A Glossa Ordinaria, erroneamente atribuída por vezes a Walahfrid Strabo (c. 808–849), é uma das mais importantes ferramentas de exegese bíblica da Idade Média, consistindo em uma vasta compilação de comentários patrísticos e escolásticos dispostos em torno do texto bíblico. Embora Walahfrid tenha desempenhado papel relevante na preservação e transmissão de textos teológicos e litúrgicos carolíngios, a Glossa Ordinaria como a conhecemos hoje foi estruturada entre os séculos XI e XII, tendo como figura central o mestre Anselmo de Laon (c. 1050–1117), da escola catedralícia de Laon, na França (SMALLEY, 1952).
A edição de 1481 da Glossa Ordinaria, impressa em Lyon ou Estrasburgo (dependendo do catálogo), representa uma das primeiras tentativas de fixação impressa dessa tradição manuscrita multissecular. Esta edição consolidou as glosas que cercavam o texto bíblico — especialmente da Vulgata latina — de modo sistemático: o texto bíblico aparecia ao centro da página, enquanto os comentários ficavam distribuídos ao redor, em colunas ou margens, à semelhança de uma moldura exegética. Tal disposição tipográfica remete ao estilo de estudo e ensino teológico da escolástica medieval (DE HAMEL, 2001).
A Glossa reunia contribuições de diversos autores, incluindo Jerônimo, Agostinho, Gregório Magno, Isidoro de Sevilha, e Beda, o Venerável, sintetizando o que era considerado consenso teológico e exegético. Ela não apenas servia como manual para formação clerical e leitura devocional, mas também como base para comentários mais avançados — como os de Tomás de Aquino e outros escolásticos — que partiam da Glossa Ordinaria como ponto de partida hermenêutico (CLARK, 1992).
Apesar da atribuição inicial equivocada a Walahfrid Strabo — provavelmente pela confusão com sua obra Glossa ordinaria in Psalmos ou sua reputação de compilador —, os estudos modernos rejeitam sua autoria da versão sistemática da Glossa Ordinaria, situando sua produção definitiva nos séculos XI–XII (SMALLEY, 1981; GRIFFITHS, 1999). A edição de 1481, portanto, pertence a um momento de transição entre a tradição manuscrita e o novo mundo da imprensa, preservando o legado da exegese medieval antes que os métodos históricos e humanistas da Reforma e do Renascimento viessem a dominá-la.
Essa edição tem valor incalculável para estudiosos da tradição bíblica medieval, pois fornece uma janela para o entendimento teológico do Ocidente cristão anterior à crítica textual moderna. Ao mesmo tempo, mostra como o advento da imprensa contribuiu para a ampliação da circulação de ferramentas exegéticas que antes estavam restritas aos scriptoriums monásticos.
Referências:
CLARK, James G. The Religious Orders in Pre-Reformation England. Woodbridge: Boydell, 1992.
DE HAMEL, Christopher. The Book: A History of the Bible. London: Phaidon Press, 2001.
GRIFFITHS, Richard. The Bible in the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
SMALLEY, Beryl. The Study of the Bible in the Middle Ages. 3. ed. Oxford: Blackwell, 1981.
SMALLEY, Beryl. The Gospels in the Schools, c. 1100–c. 1280. London: Blackwell, 1952.
WALTHER, Hans. Die Glossa Ordinaria: Ein Werk mittelalterlicher Theologie. Berlin: Akademie Verlag, 1958.
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Link para visualização do documento histórico:
Parte I - Pentateuco e Históricos I
Parte II - Históricos II e Poéticos I